O pensamento cristão no decorrer do séculos, por influência da filosofia grega, passou a defender uma separação entre o sagrado e o profano. Os gregos tinham uma visão que as coisas materiais eram ruins e profanas, enquanto a salvação dependia de libertar o espírito do material. A elite grega era tão influenciada por esse pensamento, que o trabalho manual(material) ficava relegado aos escravos, uma sub-classe, enquanto a elite se dedicava a filosofar.
Platão defendia a idéia que o mundo material é um simulacro, ou seja, uma cópia imperfeita do “mundo da idéias”. Para alcançar o “mundo da idéias”, era preciso se libertar por meio da alma, subindo e saindo do cativeiro material. Como lembra Nancy Pearcey: “O que Platão quer dizer(...) é que o mundo material é o reino do erro e ilusão. O caminho ao verdadeiro conhecimento é livra-se de todos os sentidos físicos”¹.
Agostinho foi um dos pais da igreja que assimilou o pensamento platônico. Apesar de defender que a criação material era boa, conforme Gêneses, Agostinho defendia que a criação material de Deus, era um simulacro. Há vários exemplos da dicotomia material/espiritual no pensamento agostiniano. Ele foi um dos defensores da virgindade perpétua de Maria, por associar o sexo(algo material, feio com e pelo corpo) ao pecado. Ele, também, via o celibato com superior ao casamento. A dicotomia sagrador/profano de Platão, influenciou outros pais da igreja.
A divisão sagrado/secular criou um conceito distorcido da palavra corpo. No conceito paulino, a natureza pecaminosa é descrita de várias formas, como natureza terrena, natureza adâmica, velho homem e carne. Para Paulo, a carne a ser mortificada era a natureza pecaminosa e não o corpo humano. Com o dualismo sagrado/secular, o corpo humano passou a ser visto como algo mau, sendo assim, aquilo que fosse ligado ao corpo era pecaminoso. Surge nessa época, aqueles que defendem um corpo empacotado(totalmente coberto de roupas), a abstinência de sexo(dentro do casamento), a mundanização daquilo que fosse material.
A matéria é má? Na visão bíblica a resposta é não. O primeiro capítulo de Gêneses, descreve a criação material efetuada por Deus. Moisés, escritor do pentateuco, escreve sempre a frase: “E viu Deus que era bom”, isso após uma criação material. A matéria faz parte da criação de Deus, portanto ele não é má, mas sim, sofre as consequências do pecado.
Tomás de Aquino foi outro teólogo cristão que assimilou o pensamento grego. Aquino, combatendo a teoria da verdade dupla (que dizia que duas interpretações são verdadeiras, mesmo que esses conceitos sejam excludentes), acabou assimilando outra forma de dualismo. Tomás de Aquino produziu uma estrutura dualística, dividindo o conceito de natureza e graça. Ele dizia que o homem está em um estado de natureza pura que precisa de uma adição de graça, “quer dizer, além de nossas faculdades naturais, Deus dotara os seres humanos de um dom ou faculdade sobrenatural que os capacita a ter um relacionamento com Deus”². Esse pensamento trouxe a visão que as coisas humanas são independentes das divinas, apesar de andarem juntas. O dualismo de Aquino, produziu o pensamento de viver como homem natural e homem espiritual, coexistindo em um só ser. Um homem vive com o sagrado e com o profano ao mesmo tempo.
Partindo dessa premissa de Aquino, o pensamento vigente na cristandade é que se ia a missa para um ato sagrado, enquanto trabalhar era o lado profano. Mas essa realidades eram ligadas a um só homem. Os únicos que poderiam “viver exclusivamente do sagrado”, eram os monges, pois não se envolviam com “assuntos mundanos”.
A dicotomia sagrado/secular influência o pensamento cristão na atualidade? Sim. Ainda hoje há uma dificuldade de um visão unificada da fé cristã para todas as áreas da vida (cultura, arte, lazer, trabalho, educação, política, esporte etc). O dualismo permeia não só o pensamento católico, mas muitos protestantes.
Os reformadores formam os primeiros a quebrarem essa visão dualística da vida. O conceito de sacerdócio versus leigos (os sagrados versus os profanos) deu lugar a doutrina do sacerdócio universal de todos os crentes, conforme a revelação bíblica (1 Pe 2.9). Os reformadores passaram a defender que a criação é boa, conforme a Bíblia(Gn 1.12, 21, 25), sendo assim as várias formas de manifestações culturais eram divinas, dizia Calvino: “todas a artes procedem de Deus e devem ser consideradas criações divinas”. Na visão reformada, o corpo passou a ser visto com templo do Espírito Santo (1 Co 3.16) e não casa e instrumentos dos demônios. Com a reforma, passou a se ensinar que o trabalho episcopal não é mais digno do que o trabalho manual ou cultural, pois tudo deve ser feito para a glória de Deus (1 Co 11. 31).
A Bíblia ensina tanto no antigo testamento, como no novo testamento, uma visão unificada da vida, vivendo tudo para a “glória de Deus”. No livro de provérbios, as várias instruções em relação a comunhão com Deus, estão do lado de instruções relacionadas a família, agricultura, finanças, casamento etc. É bem relevante a observação do teólogo católico Jacques Trublet, “a nossa dicotomia sagrado/profano se aplica com dificuldades à mentalidade hebraica, não que ela misture todos os níveis do real, mas porque na abordagem bíblica tudo funciona em interação”³. No novo testamento não é diferente, o capítulo quatro de 1 Tessalonicenses está dividido em três parágrafos (1-8, 9-12 e 13-18), o primeiro parágrafo está exortando à santidade, o segundo fala do amor e do trabalho, enquanto o terceiro parágrafo expõe a doutrina da ressurreição do santos e o arrebatamento; veja que o trabalho( vv. 11-12) está inserido no meio de “assuntos espirituais”.
Apesar do trabalho de esclarecimento dos reformadores em relação a dicotomia sagrado/secular, há ainda hoje no pensamento evangélico, sobras dessa visão equivocada de mundo. Por meio desse artigo, será apresentada algumas distorções que contrariam a Palavra de Deus:
a) A dicotomia sagrado/profano super-valoriza a santificação do corpo em detrimento da santificação interior. O corpo é visto como algo ruim, mau e perverso, sendo assim precisa ser mortificado por um ascetismo rigoroso.
Identificar o pecado como parte do corpo é um erro. A santidade não consiste, somente, em coisas exteriores. A Bíblia ensina que a santificação parte de dentro para fora e não o contrário, pois como escreveu Paulo aos Tessalonicenses: “E o mesmo Deus de paz vos santifique em tudo; e todo o vosso espírito, e alma, e corpo sejam conservados irrepreensíveis para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo”(5.23).
Um pensamento legalista recorrente aos usos e costumes é pensar que isso seja a essência da santidade, quanto os usos e costumes são consequências da santidade e nunca a causa. Esses usos e costumes devem basear-se no princípio da moralidade, pudor e modéstia e não recorrer a eles como garantia da salvação, isso é legalismo farisaico. O pastor Antonio Gilberto fez uma importante observação:
Uma vida equilibrada é uma vida de compostura, comedimento e moderação. Estas palavras soam como alerta para que se evite os extremos em nossa conduta, comportamento e procedimento, abrangendo espírito, alma e corpo em relação a nós a aos outros. Como mencionamos anteriormente, isto não significa o ascetismo, o isolamento, a clausura, o retraimento, e repelir o prazer natural, racional, legítimo e necessário.4
Não é bíblico ensinar que qualquer forma de lazer é pecaminoso ou que o crente para ser santo precisa viver longe das coisas materiais. Jesus foi a uma festa de casamento, mas sabia separar o que era legítimo e impróprio, tinha Ele discernimento.
b) A dicotomia sagrado/secular valoriza uma adoração estética, voltada em manifestações vocais, corporais e rítmicas; ligada a um espaço físico.
Hoje muito se fala em louvor e adoração, porém ligada a uma estética, uma inovadora fórmula. Biblicamente falando, a adoração não está presa a música ou outras manifestações vocais e rítmicas. Adoração é um estilo de vida, é mais do que música, culto e instrumentos musicais, é uma forma de viver, em todas as áreas da vida. Enquanto se adora com instrumentos, se deixa de louvar com testemunho público no pagamento de imposto. Essa dicotomia leva a drásticas consequências na vida cristã.
c) A dicotomia sagrado/secular separa drasticamente a constituição imaterial do homem, ensinando uma tricotomia dividida e não unificada.
A antropologia neo-pentecostal faz uma separação acentuada entre espírito e alma/corpo. Para alguns “mestres” da confissão positiva, o homem é um espírito que tem uma alma e habita em um corpo. A tricotomia desses “mestres” é distorcida do ensinamento bíblico, pois nessa visão, o homem não é um ser unificado em sua constituição material e imaterial e sim divido. Como lembra o teólogo José Gonçalves:
Uma visão tricotômica do homem, onde se faria o ser humano em três partes distintas e independentes não é bíblica. Embora o homem seja uma tricotomia composta de espírito, alma e corpo, todavia ele é uma unidade dessas três partes.5
A antropologia neo-pentecostal leva a distorções em sua demonologia. Segundo Kenneth Hagin, em um reflexo da dicotomia sagrado/profano, diz que o corpo e alma de um cristão pode ser habitação de um demônio, mas nunca o seu espírito. Diz Hagin:
O cristão pode ter um demônio? Decididamente, sim!Algumas pessoas estão possessas pelo dinheiro. O dinheiro é o seu deus - domina-as. Eu tenho dinheiro, mas não estou possesso pelo dinheiro. Alguém pode ter um demônio sem estar possesso. Às vezes isto acontece na carne, no corpo.6
Hagin vê possibilidade de um demônio possuir a o corpo de um cristão. Nessa concepção, o corpo é inferior ao espírito, semelhante o pensamento platônico. Muitos dos conceitos expostos são semelhantes aos apresentados pelos gnósticos, seita muito combatida pelos apóstolos Paulo e João e os pais da igreja. O gnosticismo se relaciona com o neoplatonismo, e tem várias características em comum, entre elas essa visão tricotômica distorcida. O dr. Paulo Romeiro cita D.R. McConnell, que escreveu no livro A diferente gospel(p. 130), uma importante observação:
O tricotomismo extremado da antropologia da Confissão Positiva, que identifica o “verdadeiro eu interior” do homem como fundamentalmente divino, residindo exclusivamente em seu espírito, num contraste radical em relação ao seu corpo e alma transmutados por poderes demoníacos, é muito mais característica da mitologia gnóstica do que o ponto de vista judaico-cristão sobre o homem.7
Esses são alguns efeitos do conceito dicotômico no pensamento cristão. É bom lembrar que esse divisão entre o sagrado/profano contraria a visão bíblica de que tudo deve ser feito para Deus, “portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra qualquer coisa, fazei tudo para a glória de Deus”(1 Co 10.31) e “se alguém falar, fale segundo as palavras de Deus; se alguém administrar, administre segundo o poder que Deus dá, para que em tudo Deus seja glorificado por Jesus Cristo, a quem pertence a glória e o poder para todo o sempre. Amém”(1 Pe 4.11).
Referências bibliográficas:
1- PERCEY, Nancy. Verdade Absoluta. 1 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2006. p. 85.
2- Idem, p. 90.
3- MIES, Françoise(org). Bíblia e ciências. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 37.
4- GILBERTO, Antonio. O fruto do Espírito. 1 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2004, p. 139.
5- GONÇALVES, José. Por que caem os valentes? 4 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2006, p. 83.
6- HAGIN, Kenneth E. O Nome de Jesus. Rio de Janeiro: Graça Editorial, p. 90.
7- ROMEIRO, Paulo. Evangélicos em crise. 4 ed. São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 130